Um conto sobre varão roscado?
Sim. Por que não?
Um conto sobre varão roscado? Parafusos e porcas?
Sim. Mas o essencial é a demanda. A demanda pelo varão, o clima, a chuva copiosa, as pessoas, a estrada, os livros em saldo.
Os livros em saldo?
Sim. Se não fosse pelo varão, jamais teria comprado aquele lote em saldo.
E depois? Achas que chega para um conto?
E o que é que chega para um conto?
Sei lá.
Mas sabes que uns metros de varão roscado, mesmo que seja M16, não chegam...
Não sei, acho que não...
Nem com aquele painel publicitário a cair rés vés ao carro da polícia? Ou os mecânicos à porta da oficina à espera que alguém ficasse no lençol de água?
Não te lembras de mais nada?
Do recheio das casas de ferragens...
Não escrevas.
Ia às vezes para aqueles lados.
Entre muros, as ervas escondiam antigas lápides, algumas belamente trabalhadas.
O panorama para o exterior, junto ao muro baixo dos fundos, era deslumbrante.
Naquele dia, estranhei encontrar uma tíbia, esquírolas e restos de dentes junto à porta.
Entrei e vi o que não queria.
Pedras partidas, grades arrancadas, fezes de animais, uma triste revolução sobre as sepulturas.
Fiz uma ronda e levantei grosseiramente os estragos de um estranho vandalismo, dificilmente atribuível.
No posto da guarda, assim que vi que o plantão era maçarico, e que não o conhecia, limitei-me a descrever o que tinha visto e a pedir que comunicasse ao comandante, depois de me identificar.
No dia seguinte, encontrei o comandante do posto. Tal como eu suspeitava, não fora informado.
Falámos demoradamente e ele quase se desculpou por deixar que tal tivesse acontecido.
E que falaria com os responsáveis locais. Estava convencido de que ninguém, a não ser eu, se apercebera do ocorrido.
Retorqui com uma pergunta respondida: “Sabe de quem é a culpa? É de nós todos.”
Nas eleições seguintes, houve até quem incluísse uma alínea no programa para falar na valorização do cemitério velho.
Houve depois até uma reportagem num dos canais de televisão.
Tudo continuava na mesma, da última vez que lá fui.
A culpa é de quem?
Que o povo fale de cor, na rádio e na televisão, tudo bem. Sempre foi assim, agora só é mais visível.
Que certas personagens falem do que não sabem, é normal. Sempre foi assim, agora só são repetidos mais vezes os seus dislates.
Que haja uma espécie de opinião unânime a respeito de um facto, é normal. Nada mais fácil do que criar unanimidades.
Que seja tudo baseado em disparates, em coisas que muitos viram sem ter visto, em coisas que muitos sabem sem saberem, também é normal. É a história que o diz.
Mas ainda há quem não ceda a estas unanimidades emocionais.
Usara aquela palavra a despropósito.
Sempre designara assim certas coisas desde que se lembrava.
E nunca percebera porquê, como se isso pudesse ser percebido.
Naquele dia, desmanchava a tenda, depois de uma feira de cem anos.
Abriu até pela primeira vez em mais de meio século, uma certa porta.
Viu o azul celeste debaixo do amarelo, debaixo do cinzento, debaixo do branco, nas camadas de cal.
Fosse para onde fosse que demorasse o olhar, sentia a alma da casa a ranger.
Era a ele que cabia fechar as portas, à quarta geração.
Nesse momento, a sua ama entrou-lhe pela porta. Não a via há alguns anos.
Como se os sinais se houvessem de se juntar teimosamente, ouviu-a na outra ponta dos dois quartos, feitos um, feito espaço público, murmurar:
“As voltas que eu dei para perceber porquê...”
E ali mesmo, revelou o segredo, quarenta anos depois.
Por um bambúrrio, não pode ser outra coisa, o sol bate no écran do monitor exactamente entre equinócios.
Não houve aqui mão de astrónomos antigos, apenas o concurso de técnicos mais mão na massa.
Este exactamente é uma simplificação óbvia. Mas entre o primeiro dia de Primavera e o último de Verão, já sei que para o fim da tarde tenho encadeamento.
Reparti a minha vida durante 42 anos por duas casas diferentes. Em nenhuma delas verifiquei qualquer relação especial entre esta astronomia solar e os meus espaços preferidos.
Talvez nunca me tivesse preocupado com o assunto.
Nunca construí nenhum relógio de sol em nenhuma delas, mesmo que imaginário.
Mas tinha e ainda tenho na que me resta a possibilidade de desfrutar de uma câmara escura que me permite captar as imagens da rua no tecto do quarto.
Nada mais do que o acaso permite que em certas circunstâncias de luz e de inclinação do sol tenha uma nítida imagem do que se passa lá fora projectada sobre a minha cama.
Nada disto é novidade para muitos de vós. Terão com toda a certeza observado muitas destas incidências nos locais onde vivem.
Acontece que este é o segundo equinócio de Primavera que passo sentado a esta secretária.
E no ano passado, tinha observado o fenómeno. Mas esquecera-me. Agora o sol fez questão de me o recordar.
Fica registado.
Possa um homem convencer-se de que possui uma boa memória, que ela não tardará em pregar-lhe uma boa partida.
Costumava desprezar os comentários em programação, por inúteis.
Quem programa sabe o que faz e saberá o que fez, amanhã como hoje.
Ora não é bem assim, já o sei.
Já me aconteceu ter o trabalho de perceber o raciocínio que seguira, anos antes, ao fazer determinado programa.
É que ao olhar para aquelas variáveis e funções, estava quase como o jumento defronte do paço.
Depois de agarrar a ponta do fio, foi fácil dobar a meada. Mas descobri-la levou tempo.
Fui buscar uma fotografia minha desse tempo e coloquei-a ao lado de uma actual. Depois, disse à mais antiga: “Se encontrasses este homem na rua, também não o reconhecias, pois não?”
Senti-me vingado.
Sentiu o costumeiro arrepio quando o primeiro solavanco do comboio deu ordem de marcha.
Ia despedir-se do último dos homens do seu sangue.
Absurdamente, transportava consigo um caderno preto e a máquina fotográfica.
Alternava entre a tinta e os raios de luz para registar as impressões fortes da jornada.
A tristeza do objectivo, a beleza da paisagem tantas vezes percorrida e a tanta luz diferente, que notas lhe mereceriam?
Ou seria pela ilusão de uma mulher na ponta da linha?
Na ponta da linha, presa a que estranho feitiço?
Gostava que este comboio se mantivesse assim, com poucas alterações desde o tempo em que o tomara pela primeira vez, recordando os criados de branco chamando para a segunda leva de bife com mostarda.
Isso não se mantivera.
Mas ficara o alumínio canelado, as portas de correr, o cheiro metálico.
E logo os combinava com a imagem da mulher com a qual partilhara nas vésperas uma primeira cumplicidade arrebatadora e clandestina. Agitava-se.
Poucos companheiros de viagem.
Altas vozes, afectadas por sotaque algarvio.
Um certo cheiro de casa.
Outra vez os semáforos a compasso na rua deserta.
Na manhã morna e azul, ouvia claramente os disparos electromecânicos e avançava na onda verde.
Nem vivalma.
Ao chegar à praça, ouviu o longínquo toque d’alvorada vindo do outro lado do mar.
Se não é um mar este rio...
Do convés, ao olhar para montante, não adivinhou que exactamente quatro semanas depois, traria consigo para sul tudo o que lhe importava. Por sobre aquela ponte ainda não atravessada e com a qual sonhava desde menino.
E ela lá estava, recortando-se na luz crua da manhã.
À popa, o estandarte nacional transportou-o para mais um episódio recente do fim do Império.
Distinguia claramente a bandeira das quinas lado a lado com a do Cruzeiro do Sul recortando-se no perfil do cargueiro retirante.
Na fotografia, o espectro dessa massa metálica povoada de gente sob o sol do Equador.
Em terra, entusiasmou-se com algumas velhas locomotivas que posavam para ele, entre ervas secas e cheiro de manhãs.
Nos dias que correm, há uma certa arrogância racional.
Eu sei do que falo, porque dela padeço. E julgo vislumbrá-la aqui e ali.
É o não admitirmos a surpresa dos argumentos alheios. Repito, não são os argumentos, é a sua novidade.
É o não admitirmos que haja outras hipóteses para além das que considerámos. Não é que defendamos uma ou outra em especial, é não admitirmos a novidade de uma outra qualquer. É a necessidade de a encaixarmos num determinado lote bem classificado.
São muitos outros sinais de arrogância face à novidade.
Mas, depois, há um estranho contraponto.
Face a um depoimento emocional, uma catadupa de reacções de encanto.
Face a uma imagem, um delírio de maravilha.
Face a um poema, uma exaltação.
Isto para mencionar só as reacções emocionais positivas.
São essas que interessam para serem confrontadas com a anti-surpresa racional.
O que é que isto quer dizer?
E não terá sido sempre assim?