espero que sim por MCV às 21:17 de 27 dezembro 2003
Aprender a pensar
A rapariga era estudante de medicina.
Certo dia, depois da conversa com os amigos ter esmorecido, disse qualquer coisa assim:
“Sabes, ando agora num grupo para aprender a pensar.”
Ainda não encontrei uma explicação satisfatória para haver Tiagos e não haver Tantónios.
Excepção feita a Tantónio Barbosa, o violinista, que não conheço.
Claro que confirma a regra.
Mas e os Tonofres? Os Teliseus? Apenas o Bonfim Machado, motorista suponho que em Rio Branco?
Não percebo. Porque é que os Tiagos proliferaram e os outros não?
Deve haver alguma conjura secreta.
Por aqui, vamo-nos contentando com o Santo Vídeo, ou Santo Bídeo. Ali para Gaia.
Em dia de São Testêvão.
Lá vem mais uma vaga contra a vaca.
É assim de vez em quando.
Há, no entanto, um explicação que me falta:
Porque é que as pessoas que se eximem de comer carne de vaca, continuam a viajar de carro?
Não só não atinjo a lógica da coisa como tenho o palpite que, se seguissem a voz da razão, as estradas ficariam muito menos perigosas.
Ou não seria assim?
Isto não tem nada a ver com os vegetarianos, obviamente.
Acordarem-nos naquela fase inicial do sono é o que dá.
A noite de Natal era apenas uma noite mais de diversão.
Um bailarico, as amigas do costume.
Ainda entrámos em palco mas não nos deixaram substituir os nossos amigos instrumentistas.
E à cama cheguei tarde e a más horas.
E fui acordado menos de uma horita depois, pela minha mãe (nem ouvi as pancadas na porta):
"Está ali um amigo teu que precisa de ajuda!"
Fui ver. O A.M. estava à porta, enregelado e a rir-se. Eu a tentar perceber porque é que ele não tinha ido para casa.
Como a noite era de forte geadão, eu já tinha saído do quarto equipado com samarra e botas caneleiras.
E ele a rir-se. "Eh, pá, tive dois furos..."
"Dois furos?"
Agora, era eu quem esboçava um sorriso: "Dois furos?"
"Sim! Desenrasca-me lá! Tive que vir à boleia numa bicicleta a motor."
Fui dizer ao meu pai que eram dois furos, que o rapaz precisava de ajuda: "Posso levar o carro outra vez?"
O meu pai a calcular outras aventuras mas admirado por me ver de pijama e samarra. Afinal...
Lá fomos.
O moço tinha saído da estrada numa recta, deu-lhe o sono e lá estava a carrinha com duas rodas na valeta.
O primo da namorada enregelado e enrolado no banco olhava para nós como para um filme que ele teimava em ver, lutando contra o sono.
Foi quando passou um matinal, fumegante e admirado motociclista que eu me dei conta que estava a começar o dia de Natal no meio do mato, em pijama.
Lá desmontámos as duas rodas, deixámos a carrinha ancorada nos macacos e ala para casa do M.V. que ele é que percebe de oficinas.
Mas ainda me lembrei de ir a casa vestir-me.
Quando chegámos a casa do outro, ainda eram sete e tal.
Relutantemente, lá nos abriram a porta e encaminharam para o quarto do moço.
Acordou connosco a abanar a cama.
Ria-se, ria-se, só se ria.
"Tal não foi o espectáculo?" - e sufocava ao rir-se deitado na cama. E a gente a baralhá-lo, a contar-lhe histórias.
É claro que foi depois preciso uma boa meia-hora para o convencer definitivamente de que o caso era urgente.
E lá o arrancámos da cama, a caminho da estação de serviço.
Depois de arranjar as cacetadas nas jantes e de remendar os furos, de voltar uns bons vinte e tal quilómetros até à carrinha e pôr tudo em condições, dei comigo ao meio-dia de Natal a beber conhaques e a fumar charutos espanhóis, no café das bombas de gasolina.
Mas já não estava em pijama.
Alguém devia estar à nossa espera para o almoço.
Elidir os factos
Submersos ou não
Empurrar os dados
Com as costas da mão.
Tombar registos
Evitar ciladas
Entrar pelos vistos
Nas noites veladas.
Semear percalços
Envoltos em pó
Contornar os traços
De rectas, a só.
Empilhar retratos
De outras idades
Vestir novos fatos
Em novas cidades.
SG, inéditos, 2002 por MCV às 19:51 de 24 dezembro 2003
Há poucas coisas que sejam mais de homem para homem, de pai para filho, do que a transmissão da técnica do nó da gravata.
Todas as excepções confirmam a regra.
Um dia, sem se saber porquê, coloca-se uma gravata à volta do pescoço.
E de repente, damo-nos conta que não sabemos fazer o nó: “Pai!”
E o segredo transmite-se, frente a um espelho.
Pura magia.
Eu herdei o four-in-hand
Mais uns envelopes a monte na caixa do correio.
Propaganda. Mas também alguns catálogos que eu pedira.
Fui abrindo, da embalagem mais mal apresentada à mais interessante, o tal fecho com chave de ouro.
O último envelope era gordo. Catálogos, tabelas, fichas técnicas.
Uma brochura sobre a fábrica.
Abri. Papel de qualidade, boas fotografias.
E um susto de morte ou algo parecido.
A páginas tantas, no laboratório da fábrica, estava eu a olhar atentamente para alguma coisa sobre uma mesa. Não, não era a imagem do espelho de fazer a barba. Era mesmo a minha fotografia, igual a tantas outras semelhantes.
Ainda hoje não sei quem era o homem da foto. Também nunca fui à procura dele. Talvez um irmão gémeo.
Também já ninguém se lembra.
Eu próprio confesso que não me lembro dos intervenientes, nem do local.
Mas lembro-me do conteúdo.
Tratava-se do arranjo formal de uma determinada calçada à portuguesa (perdoem-me todas as incorrecções).
Creio que o autor do projecto pretendia incluir motivos da contemporânea idade no desenho da calçada.
Entre outros objectos, figuravam berbequins.
Levantou-se logo o habitual coro de protestos.
Continuo sem saber muito bem como é que se discute uma obra de arte, mas isso é outra história.
Agora que se levantassem contra os berbequins, é a habitual tacanhez pura e dura.
Não fazem eles parte da nossa vida quotidiana? Não precisamos deles todos os dias?
Não os mencionou António Lobo Antunes nos seus livros? Não está lá toda a nossa vidinha?
Os motivos manuelinos vieram de que século?
Arre macho, mais uma vez! Ponham lá os berbequins, os discos compactos, as jantes, os telemóveis, caramba!
imagem de acordo com o modelo 7152 da B&D, segundo catálogo
Já não sou do tempo dos quilómetros de arranque.
Experimentei apenas as vertigens das rectas de Pegões e de Alcácer.
E consegui uma coisa de que eu próprio me admiro, atravessar a Península Ibérica cruzando, ultrapassando e sendo ultrapassado por uma escassa dúzia de automóveis. E sempre por estrada alcatroada.
Tenho a nostalgia do pouco trânsito. Um elitismo sem sentido e sem objectivo.
Possa eu traçar rotas ignotas que sempre encontrarei companhia. Já nada como dantes.
Mas ainda faço viagens só por fazer. Fora de época, em dias de semana e para sítios onde quase ninguém vai.
Cada vez mais, fujo da estrada se ela me irrita. E ela irrita-me em épocas destas. Não me mexo.
O menino Jesus terá de apanhar-me de outra maneira.
E as estradas tinham marcos brancos nas curvas de montanha, os camiões fumegavam de velhice e as bombas de gasolina eram por vezes obras de arte, era difícil encontrar-se o que comer em certas zonas.
Naquela passagem de nivel havia uma taberna com maravilhosas sandes de presunto e paio.
Para a meia-hora que às vezes demorava o comboio, havia sempre o conforto do pão fresco e da carne bem curada.
Era vê-lo, ao dono da casa, de carro em carro, a fazer negócio.
Quando começaram as obras da passagem superior, amaldiçoava os pobres operários.
Houve até quem tivesse falado em apedrejamentos.
A obra ficou pronta há uns trinta anos.
No outro dia, fiz um desvio e fui espreitar a velha passagem de nível.
A taberna é agora um café.
Nada indica que haja saborosas sandes de paio e de presunto.
imagem adaptada do Armstrong Siddeley Saphire em por MCV às 02:01
Duas de mar
O mesmo Atlântico em Dezembro
imagens de MSMS e Sky News por MCV às 22:40 de 21 dezembro 2003
Fahrenheit 451
Às vezes, tudo é cinema.
Naquela manhã, do alto da chaminé industrial, chamei pelo telefone um velho amigo do complexo fabril.
Precisava de energia. Vi-o chegar, desgrenhado como sempre, gesticulando para a direita e para a esquerda enquanto falava ao telefone com alguém.
Era um peão, uns bons metros abaixo.
Depois, o meu telefone tocou. Que estava tudo arranjado, dizia-me com o braço livre a desenhar gestos no ar.
Quando desci, já ele se retirara.
Mas passados minutos, chegou outra personagem, impecável no seu fato vermelho de bombeiro, capacete anos 60, ao volante de um pequeno jipe que trazia atrelado um gerador, tudo vermelho. Reconheci-o de imediato, era Montag.