Parece pouco provável que alguma vez tenham saído do planeta Terra objectos que não tenham sido criação humana.
Quem estivesse a observar de longe a pequena esfera, envelheceria* até ver sair dela uns mísseis fumegantes.
A ser verdade a primeira afirmação, a mais exuberante manifestação de vida (seja lá o que isso fôr) para o exterior foi obra de uma só espécie.
O que merece alguma reflexão. Não vou repetir o que já disse sobre a natureza humana. Mas a verdade é que o homem se auto-intitula espécie dominante pelo simples facto de a sua percepção lhe proporcionar o espectáculo da sua própria criação. Vê o planeta transformado pela sua mão e conclui.
Mesmo que não contabilize dentro de si os micro-organismos (in) ou dependentes que lhe proporcionam a vida. E tudo o resto.
O homem é apenas uma pequeníssima parte da vida. Tal como a vida é uma pequena parte da natureza.
Mas o homem pretende lutar contra a natureza como se não fosse parte dela.
Pretende perpetuar-se sem cuidar de verificar que um sem-número de espécies soçobrou.
Admite até extinguir outras espécies, directa ou indirectamente, considerando-se a salvo.
Talvez este instinto seja comum a todos os outros seres vivos. Talvez até alguns deles tenham essa consciência.
Mas é quase o mesmo do que a mente a lutar contra o corpo. Como se não fizesse parte dele.
* É uma mera figura de estilo. Mas há uma escala adequada em que alguém, humano ou não, vendo ou captando os sinais de outra forma, dotado de vida perecível, com crescimento, apogeu e decadência, veria os tais mísseis na velhice.
Vitrúvio fez bem em colocar Arquimedes na celha.
Para além de enquadrar a argumentação, deu a nota de que o crime não escolhe local nem data certa.
É justamente esse facto que às vezes me atormenta.
Porque raio é que uma ideia há-de surgir no banho, à mesa do almoço, no regresso da praia, debaixo de um chaparro?
É certo que hoje dispomos de uma parafernália de objectos auxiliares (pequenos gravadores, agendas electrónicas, telefones com gravador, etc.) mas nunca estão à mão quando são precisos.
A ideia parva tem sempre que aparecer em altura imprópria. Na mais imprópria. E às vezes esquece.
O pior é quando não esquece de todo. E ficam aquelas pontas da meada a atormentar-nos.
Deve ser por isso que estou a escrever estas linhas.
Depois de quase seis meses e instado para o fazer, tive que arrumar a casa.
O espaço ocupado pelos ficheiros de imagem que tinha alojados na Globo era assustador.
Assim, mantendo-se as imagens, reduziram-se a definição e o tamanho.
Em alguns casos, imagens de arquivo lá para trás já não têm a legibilidade necessária para a boa compreensão dos posts. Penso que não é grave.
Doravante, manter-se-á o cuidado em não colocar imagens demasiado definidas ou grandes.
Mas não há-de ser por isso...
Eu tinha visto o cão. Lá bem ao longe.
Perto da entrada de área de serviço.
Mais um que vai morrer na auto-estrada. Talvez causar um acidente.
Deixei-me ir, a ver se o bicho retomava o caminho das bombas de gasolina, de onde devia ter escapado aos donos.
Mas não, voltou para o meio da via.
Talvez parar nas bombas e avisar o pessoal da manutenção. Chegam tarde demais. Apanhar o cão é bem capaz de ser mais perigoso do que deixá-lo ir.
A rapariga dos cabelos louros que seguia à minha frente fez pior do que isso.
Só deve ter visto o cão quando estava quase em cima dele, senão não teria travado com o carro a escorregar para a esquerda.
Depois, saiu a correr do carro, parado no meio das duas faixas, e deixou a porta aberta.
Mas ainda dava para passar, junto ao separador.
Porreiro, pensei, se o cão não correr para a parte de trás do carro, ela assim quase bloqueia a estrada e evita o atropelamento pelo menos nesta faixa.
Já não parei na área de serviço. O pior já estava feito. Espero que não tenha acontecido nada à rapariga e ao cão, nem a outros que viessem mais para trás.
Quantas atitudes bem intencionadas não estarão a matar gente e cães, por aí, na estrada?
Era da pilha por MCV às 19:03 de 11 fevereiro 2004
A quantas ando?
Cabeça dura. Não tenho grande ideia de alguma vez ter pedido conselhos a alguém.
Exceptuando as visitas ao médico e ao jurista. Mais ao segundo que ao primeiro, que os médicos não dão conselhos, receitam.
Mas o facto é que, às vezes sem pedirmos, eles vêm.
E vez por outra, por que não segui-los?
Certa vez, a minha companheira disse-me algo intrigante:
"Se andas tão nervoso, porque é que não deixas de usar relógio?"
Fiquei a olhar para ela, com um olho no burro outro no cigano.
"E como é que chego a horas aos sítios?"
"Ah, chegas! Não te preocupes com isso. Relógios é o que não faltam por aí! E podes sempre perguntar as horas. Vais ver que te habituas depressa e perdes parte densa tensão."
"Tirando o relógio? Só isso?"
"Há quanto tempo não me vês de relógio?"
"Sei lá. Há muitos anos."
Experimentei.
E a coisa resultou. Seja por autoconvencimento ou por outro factor qualquer, resultou.
Resultou tão bem que estive aí uns treze anos sem o adereço no pulso.
Poucos dias antes do último natal do milénio (nas contas oficiais), um indivíduo que eu nunca vira entregou-me uma caixa: "Isto é para si!"
A oferta não tinha nada de mais. Tratava-se de um brinde comercial.
A caixa parecia um daqueles sarcófagos com janela para o rosto do morto. Outros diriam que era uma caixa de seringas à antiga, mas com óculo.
E não é que me apaixonei de imediato pela porra do relógio. Era parecido com muitos outros com que eu sonhara em miúdo.
Coloquei-o no banco do carro e andei.
Ao fim de uns quilómetros parei o carro e pimba, o morto saía do ataúde para a pulsação dos dias.
Até hoje.
Acordei quatro horas depois do calculado.
O infalível monstrinho que nunca se atrasava nem adiantava deixou de pulsar. Não é que seja despertador. Mas o golpe de vista para o mostrador dera-me a segurança de mais quatro horas de sono.
Será da pilha?
Se não fôr, volta ao sarcófago. Alinhará à esquerda dos outros objectos mortos que povoam os já cantados quatro cantos do meu reino por MCV às 22:17 de 10 fevereiro 2004
A barrilada
Não era uma barrica, mas também não era um barril, era um bidom de 200 litros.
Escuro, muito escuro.
À noite, no meio da estrada, à saída de uma curva, era um perigo para os carros.
Não adiantava muito tentar demover o grupo de utilizar aquele meio absurdo e perigoso para parar os automóveis.
Continuavam a delinear as perguntas que fariam aos passantes e a atitude a tomar em caso de resistência.
Viam-se as caçadeiras e os cartuchos à cintura.
Não se entendiam muito bem quanto a quem comandava as tropas.
Mas nada de passarem carros. Nem um.
Quanto mais tempo passava, maior era a discussão sobre os métodos a adoptar.
Até que um resolveu pegar na bicicleta a motor e comunicar: "Já venho!"
Voltou depois carregando uma grade de cervejas que a noite podia ser longa e o ar estava quente e seco.
Quando finalmente apareceu o primeiro carro, ouviu-se um chiar de pneus, viram-se um faróis a ziguezaguear e o carro deteve-se junto ao grupo.
O condutor, indignado, mas com alguma contenção, apreciando o grupo e as suas armas de caça, perguntou: "Mas afinal o que é isto? Quem é que manda aqui? E o que é que se passa?"
O grupo entreolhou-se e uma certa tensão sobreveio na expectativa de que alguém assumisse a responsabilidade.
O homem mais velho avançou:
"A gente não descobre o que é que se passa!"
E os outros concordaram:
"A gente não descobre o que é que se passa!"
Já se pode dizer quais são os pontos fortes deste blogue, segundo os motores de busca.
A crer nesta amostra de palavras mais utilizadas nas pesquisas afluentes:
Eu pensei em certa altura que a procura por salsaparrilha se devia a algum trabalho escolar aí para o Brasil.
Mas agora julgo que não. Deve ser qualquer coisa que está a passar na televisão.
Continuam a julgar-me um maluquinho das apostas (totobola, totoloto, desdobramentos).
O grande mistério são as fotos e o nu.
Não me queixo. Na idade da reserva, olho para trás e não me queixo.
O quinhão que me calhou não foi mau.
O que não quer dizer que depois de ver o Papa, esteja preparado para o pior.
Em primeiro lugar, não sou católico.
Depois, foi o Papa que veio aqui à minha terra, não fui eu que fui a Roma.
Signifique isto o que significar.
Há coisas que gostava de voltar a experimentar.
Os licores espanhóis em ruas de casas tortas.
O teu rosto na minha memória sob a bandeira das quinas.
O cheiro dos comboios de alumínio.
A manhã campestre de um urbano, acabado de sair da cidade.
E a contra-manhã urbana de um rústico, chegado à urbe com traços de cal na samarra.
A chuva fustigante no meu tweed, impróprio para a noite.
Atravessar os Países Baixos, sob denso nevoeiro.
Nada que se não possa repetir.
Mas e as coisas impossíveis?
Esconder-me atrás do guarda-vento com vidros coloridos?
Subir à oliveira multicentenária?
Dar de trombas com a minha cadela em manhãs de inverno? E deixá-la morder-me ternamente o nariz?
Percorrer a pista de obstáculos?
Montar a escola de galinhas?
Impossíveis.
Às vezes ainda me acho capaz de grandes cometimentos.
Quantas mais coisas para a história conseguirei alcançar?
Uma das mais surpreendentes características da natureza humana é o alheamento face à sua própria realidade.
É claro que isto é assunto para muitos compêndios, abordado aqui já por algumas vezes ao de leve, como compete ao local e ao autor.
O autoconvencimento é uma arma qualquer de que a vida dispõe para combater o desalento, suponho eu.
E talvez por isso inúmeras vezes se ouça falar de soluções definitivas.
Os cemitérios da história estão tão cheios de soluções definitivas, quanto os dos homens, de homens essenciais.
Há muitos anos, no excelente programa de rádio "Lugar ao Sul", de Rafael Correia (Antena 1, sábados, 9:00 - 11:00) travou-se um curioso diálogo entre o realizador e um homem que caçava rãs em algum lugar do meridião.
Perguntava o primeiro se rã seria peixe ou carne.
O segundo respondia, depois de uma pausa em que parecia meditar, que era peixe.
Rafael Correia iniciou então um delicioso jogo de palavras com o seu interlocutor, por certo adivinhando já o excelente momento de rádio que se seguiu.
Ao fim de um longa conversa sobre peixes e anuros, quando o programa caminhava para o fim, entre a música misturada e já sobreposta aos sons ambiente, distinguia-se vagamente a voz do pescador-caçador: "Rã é peixe! Então rã não é peixe?"
Anos depois, eu, o R.C. (não, não é o grande homem da rádio) e outra figura eminente do meio conferenciávamos em torno de um prato de carapaus bigodudos.
Disto e daquilo passou-se à análise da famosa sub-telha e da redundante protecção que concede aos esconsos.
Caí na asneira de dizer que se fosse o caso de um gato deslocar uma telha, em telhados acessíveis pelo desvão e cujo estado é mais facilmente observável pelo interior do que pelo exterior, o que aconteceria é que niniguém daria por isso e a água apareceria, mais tarde ou mais cedo, em local diferente de onde se estava a infiltrar.
A minha conclusão não mereceu reparo da figura eminente que connosco partilhava o lanche.
Com o que não concordou foi com o ponto de partida. Então era lá possível uma telha mover-se?
Seguiu-se acesa polémica em que figuraram os já mencionados gatos, as mais diversas aves, o próprio Eolo (de que a figura não conhecia a graça) e o mais que lembrou.
E desfez-se em seguida, esmagada pelo argumento implacável de uma sapateira recheada (a tal santola que eu e o R.C. apostámos há anos, não há meio de lhe encontrarmos o paradeiro).
Ora bem, da patuda passou-se aos cafés e à conversa sobre outros assuntos.
Quando a coisa começou a ficar demasiado complicada para os conhecimentos da figura, esta guardou silêncio, acompanhando-nos apenas com o olhar.
Mas a tentação de intervir era muita. Notava-se nos trejeitos e nos rictos faciais.
É quando num momento de maior entusiasmo na nossa discussão, nos damos conta de que a figura balbuciava: "Mas as telhas não se conseguem arredar... não se conseguem..."
Eu parei de argumentar e disse bruscamente para o R.C.: "Rã é peixe!"
Ainda hoje a figura não percebeu porque é que o R.C. saiu disparado para a casa de banho, de mão na boca, ao ouvir a minha ordem.